terça-feira, 14 de abril de 2009

Compartinhando: momento de oração

A primeira vez que li essa oração foi em 1999 e, desde então, nos momentos em que o "jardim do vizinho me parece mais florido" eu lembro dessa oração e agradeço.
Prece Hindu
É maravilhoso, Senhor
Meus braços perfeitos
Quando há tantos mutilados,
Meus olhos perfeitos,
Quando tantos não têm luz;
Minha voz canta,
Quando outras emudecem,
Minhas mãos que trabalham
Quando tantas mendigam.
É maravilhos, Senhor:
Voltar a casa,
Quando tantos não têm para onde
voltar,
É bom sorrir, amar, sonhar, viver,
Quando tantos choram, odeiam e
revolvem pesadelos
E morrem sem viver.
É maravilhoso, Senhor:
Ter um Deus para crer,
Quando tantos não possuem o lenitivo
de uma crença
É maravilhoso, Senhor:
Ter tão pouco a pedir
E tanto para agradecer.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

círculo vicioso


Eu me perco naquele olhar


e naquele sorrizinho torto e contido


que não esconde a satisfação de ser desejado.



Me encanto por seus olhos


e pelo modo cínico com que provoca meu olhar.


Você sabe o que fazer para me deixar ruborizada


Meu rubor faz-se logo visível



Eu mudo a direção do olhar


mas o imã que emana do seu me impede


e eu fico presa nesse círculo vicioso


porque meu olhar procura pelo seu.



Dayana Costa (eu mesmo)





Presença


Eu analiso, observo, pondero e me convenço...chega!


A lucidez parece finalmente ter dado o ar de sua graça.


Sim, o melhor a ser feito é esquecer.


Mas qualquer convencimento é logo desfeito por uma presença...


Uma presença pertubadoramente convincente do contrário:


não esquecer!!


Pronto, a lucidez foi embora e de novo me percebo algemada a mesma ilusão.

Dayana Costa ( eu mesmo)

O tédio...

Quadro de Walter Sickert



263


Tão dado como sou ao tédio, é curioso’ que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele seja.


Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento. Em mim, o tédio é frequente, mas, que eu saiba, porque reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um domingo inerte; posso sofrê-lo, repentinamente, como uma nuvem externa, em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim.


Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é uma grande desilusão incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida - dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio, como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.


O tédio… Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer - tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação directa, como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso desentendimento.


O tédio… Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio… É como a possessão por um demónio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de nós imagens, e a elas infligindo maus tratos, que esses maus tratos, por uma transferência astral, se reflictam em nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de bruxedos de um demónio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha, senão sobre a sua sombra. E na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.


O tédio… Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da acção chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.


De mim porquê, se não pensava em mim? De que outra coisa, se não pensava nela? O mistério do universo, que baixa às minhas contas ou ao meu reclínio? A dor universal de viver que se particulariza subitamente na minha alma mediúnica? Para quê enobrecer tanto quem não se sabe quem é? É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar de mais ou de não digerir bem.


O tédio… E talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir…


O tédio… Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.


Bernardo Soares - Livro do Desassossego