quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Perto do coração (Clarice Lispector)

Perto do coração selvagem foi lançado originalmente em 1943 e foi o romance de estreia de Clarice Lispector então com 23 anos. O romance foi bem recebido pela crítica da época por sua inovação narrativa e abriu caminho para a publicação de uma vasta obra literária.

O romance de Clarice não segue uma ordem temporal. O texto é construído entre muitas idas e vindas entre a infância da protagonista e o seu tempo presente. O leitor vai construindo o quebra-cabeça a partir dos fragmentos apresentados pelo narrador, que por vezes se confunde com a voz da personagem em foco porque acompanha tudo que se passa na cabeça das personagens.

Através do uso de dois tempos narrativos acompanhamos a história de Joana: uma criança curiosa, criativa e interessada nas palavras, mas solitária. Durante sua primeira infância morava apenas com o pai, pois a mãe havia falecido. Depois de ficar órfã também de pai passa a viver com uma tia. Essa tia não sabe lidar com a menina e a manda para um internato após a garota roubar um livro na sua presença e não sentir remorso pelo ato. Mais tarde Joana casa com Otávio. Otávio, por sua vez, também morava com uma tia/prima Isabel e com outra prima, Lídia. Chegou a ser noivo de Lídia, mas rompe o noivado com ela para casar com Joana. Depois do casamento com Joana procura novamente sua prima Lídia e os dois passam a ser amantes.

No vai e vem desses fatos, esse narrador peculiar vai introduzindo os outros grandes temas que inundam a cabeça dos personagens, especialmente de Joana (e desde sua infância), com suas questões que orientam a busca da protagonista: "quem eu sou?", "o que é que se consegue quando se fica feliz?", "Como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione?", "Como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma quatro paredes?" "Havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?"

Na busca por respostas a água parece sempre indicar um momento de entendimento para Joana. Primeiro na praia quando percebe que ficou órfã e mais tarde no banho quando percebe que chegou a puberdade e acolhe esse corpo novo. De alguma forma a água está intimamente ligada a estes momentos epifânicos de Joana bem como a criação dessa liberdade que a personagem almeja.

Perto do Coração Selvagem é um livro que exige uma atenção focada porque facilmente podemos nos dispersar durante a narrativa quando o narrador navega entre a terceira pessoa no discurso direto e uma voz narrativa a partir da cabeça de Joana e o fluxo de consciência se intensifica passando de uma ideia a outra de forma tão rápida que se o leitor não fica atento pode perder-se. E por isso talvez seja uma leitura considerada "difícil" e não agrade a todos justamente porque exige uma imersão profunda para a melhor compressão do que está sendo narrado, mas nada que não possível a quem se aventure.

 

Título: Perto do Coração Selvagem 
Autora: Clarice Lispector 
Editora: Rocco
Número de paginas: 204
Avaliação: ★★★

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Voltando...

 Olá, 

criei esse blog lá em 2008 com a pretensão de compartilhar minhas leituras e coisas que eu gostava. Não necessariamente para alguém ler, mas para manter um arquivo pessoa disto. Minha última postagem é de 2018. De lá para cá (julho de 2022) muita coisa aconteceu na minha, muitos livros foram lidos e teve época de não ler nada. Mas o meu amor pelos livros não mudou muito. Hoje me sentindo nostálgica resolvi resgatar esse blog para compartilhar as leituras do ano (a partir de agora). Vamos tentar!

"A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem."

(João Guimarães Rosa)

sábado, 13 de janeiro de 2018

Impressões de Leitura: João Miguel (Rachel de Queiroz)


QUEIROZ, Rachel. João Miguel. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.



Ler Rachel de Queiroz sempre me traz a sensação de encontrar velhos conhecidos. O lugar da minha infância, mesmo quando as personagens são tão diferentes de mim parece que já ouvi falar daquele tipo em uma era remota. Talvez por isso sinta tanta afeição pelas suas narrativas.

João Miguel, personagem que dá título ao livro, é um homem comum que sob embriaguez cometeu um crime. Um homicídio. E por causa deste ato de insensatez ébria acaba preso. E a partir daí o cenário da narrativa é o cárcere. Um cárcere bem peculiar, só possível no interior de uma cidadezinha nordestina dos anos 30, onde os presos transitam com certa liberdade dentro das dependências da cadeia, a exceção de João Miguel que ainda não foi para o sumário (ou seja, não foi julgado e sentenciado) e permanece trancado.

Os presos, “livres” na cadeia, mas aferrados ao compromisso resignado de cumprir sua sentença, parecem submetidos a uma Lei moral ou apáticos demais para fugir. Por exemplo, quando João Miguel, recém-chegado, questiona a outro preso, Zé Milagreiro, o porquê de um terceiro preso não fugir visto que vive uma espécie de regime semiaberto, Milagreiro responde: “Pra quê? Onde é que, fugindo, se escondendo, ele podia viver melhor do que aqui? Só tem mesmo essa obrigaçãozinha de vir dormir na cadeia”.


Em “João Miguel” Rachel introduz uma breve discussão sobre o sistema penitenciário, sobre sua validade e capacidade, ou não, de recuperação; discussão que me pareceu o mais relevante deste livro.  No entanto, as personagens, apesar de aceitarem a pena resignadas, pareciam não sentir nenhum remorso pelo assassinato cometido, o que me causou certo estranhamento.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Crônica

A BELEZA DE UM ROSTO FEMININO 'FELIZFERIDO' POR BARBA DE AMOR
por
Artur da Távola

Perdoe, leitor, eu, um senhor antigo, algo pudico,desajeitado e venerável, tomar seu tempo e levar preocupação para tema pouco relevante e construtivo, o de um belo rosto de mulher, vermelho de barba. Vermelho de raiva, encabulamento, carmim ou rouge, é comum; mas vermelho de barba foi uma estréia! Não pense, por favor, que os anos vão tornando o cronista atrevido e amolecendo idealismos antigos, capazes de artigos salvadores, participantes, engajados, desalienados, vanguardistas e outras tantas nobrezas morais. Não pense isso. Mas raros sinais de amor podem ser ao mesmo tempo tão ofensivos e delicados quanto um rosto feminino felizferido por aquele troféu e denúncia: o selo avermelhado da irritação radiosa de uma barba.
Troféu e denúncia. Há mulheres que se douram no rosto depois de amar, mistura de barba com felicidade. Não era o casa da cena que narro, mero encontro "bem comportado" de quem vivia se amando a distância e trocou abraços e beijos, nada mais. Mas a marca no rosto daquela mulher de pele tão delicada foi uma súbita presença da realidade e da poesia.
A marca de barba é sempre ofensa carinhosa. Eco natural da brutalidade sem agressão da condição masculina. Espécie de resultado natural do encontro de peles no amor. A barba do homem ofende a delicadeza da pele da mulher como a mostrar o atrito das duas naturezas, a feminina e a masculina, tornadas uma só na união amorosa.
Dizem que o princípio feminino e o princípio masculino se separaram no início dos tempos. Eu digo que se reencontram em cada momento de amor. A unidade primordial dos dois, da qual saíram o homem e a mulher, é buscada no ato de amor. É encontro e procura, busca e tentativa, integração e troca. Um é o outro, na momentânea revivescência de quando eram a unidade. Daí a sensação de prazer desse reencontro do que é uno nas  peles, porque uno foi na paz  primordial.
A barba que leve ofende a face delicada da mulher, no encontro ou pré-encontro do amor, simboliza todas as procuras e ofensas do corpo que vai, depois, ser fecundado pelo amor ali (in) augurado. A fecundação é festa e ofensa. Festa porque vida, alegria, criação.  Ofensa, porque  alegria, vida e criação incham, modificam, alteram, machucam. Chegam a sangrar, até.
O rosto roçando no rosto é a primeira união, o encontro inaugural. É a ligação. É a ligação da parte do corpo que fala, vê, ouve, cheira, sente na pele as sensações eróticas que estabelecem as bases da afinidade. O encontro dos rostos é, portanto, o diálogo silencioso mas definitivo de partes muito significativas do homem e da mulher. No rosto está a sede dos sentidos.
No rosto lixado de barba, exitado de barba, ferido-amado de barba, está a mulher na eterna delicadeza de quem recebe, e o homem na ofensa natural de quem age. E a pele guarda zelosamente as marcas da barba, retendo lembranças dos momentos repletos de trocas, sons e diálogos secretos.
Impossível não se comover vendo a jovem mulher carimbada de amor, selada de pecado no passaporte da vida, que é o encontro de peles. Fere e excita, mas acaricia e agrada. É lindo verificar como a pele guarda a recordação do atrito que produz o calor do fogo, que aranha e engambela, como tudo o que ama, tudo o que procura, tudo o se atrai.  

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Desafio Literário: Outubro - Ficção Científica

ASIMOV, Isaac. Eu, robô. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2004.



Eu, robô é uma coletânea de nove contos que trata da evolução dos Robôs, desde o primeiro modelo que era usado como babá e não falava até os ultramodernos que controlam toda a produção e também a humanidade. Acompanhamos essa história da robótica pelo depoimento da robô psicologa, Susan Calvin. 

Todos os contos apresentam um dilema envolvendo as famosas três leis da robótica que assim como o termo robótica foi uma criação de Asimov e que tem repercussões ainda hoje. As três leis da robótica são: 
Primeira Lei: um robô não pode ferir um ser humano, ou, através da inação, permitir que um ser humano seja ferido.
Segunda Lei: um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto se tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
Terceira Lei: um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira Lei ou a Segunda Lei.
Conta-se que Asimov criou essas leis para superar o que ele chamou "síndrome de Frankenstein", ou seja, que todo ser criado pelo homem iria voltar-se contra ele como um castigo por ter ousado manipular os mistérios da criação. Sendo assim, apesar de existirem sempre conflitos envolvendo as três leis e o relacionamento de homens e robôs em todas as histórias, a solução está justamente nessas três Leis. 

O livro é muito bom. Recomendo sinceramente que todos leiam. Gostei tanto que já comprei outros livros do autor que tratam desse universo dos robôs.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Desafio do Halloween Literário: update 4

BLATTY, Willian Peter. O exorcista. 1. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2013.


O exorcista conta a história de uma menina de 11/12 anos, a Regan, que supostamente é possuída por um demônio. Regan é filha de uma atriz famosa de Hollywood, seus pais são separados, o pai é ausente da vida dela. Ela vive com a mãe, a secretária da mãe, Sheron, e dois outros empregados da casa, Willie e Karl. A mãe de Regan, Cris McNeil, é ateia mas a filha é bastante curiosa sobre Deus e faz perguntas a esse respeito para a secretária, Sheron, que é religiosa. Tudo na vida da família vai indo bem até que Cris começa a ouvir barulhos estranhos vindos do quarto da filha, além disso a filha conversa com um "amigo" imaginário, o capitão Haward" através de um tabuleiro ouija. A partir desse ponto Regan vai ficando cada vez mais estranha e sua mãe a leva a vários médicos para tentar descobrir o que tem de errado com a filha. A situação chega a ficar tão bizarra que os próprios médicos, em determinado momento, recomendam à Cris procurar um exorcista.

A mãe, desesperada procurada o padre Damien Karras para realizar o exorcismo, porém antes que seja realizado este procedimento é necessário comprovar que se trata realmente de um caso de possessão. E assim, durante todo o livro o autor vai narrando o desenrolar da situação sem nunca deixar claro se é uma doença mental ou uma possessão real porque para todos os fenômenos que ocorrem há uma explicação científica ou, ao menos, uma explicação plausível. O leitor com aqueles dados vai decidir se a menina estava ou não possuída. Confesso que cheguei ao ponto que pensei "é mais fácil acreditar que realmente é um demônio agindo do que pensar que toda aquela bizarrice era uma produção da mente de uma menina de 12 anos".  

Enfim, é um livro interessante, principalmente por essa dúvida que o autor apresenta. Afinal Regan estava possuída ou todos os fenômenos sobrenaturais eram resultado de uma doença mental? Leia o livro e tire suas próprias conclusões.

O livro foi adaptado para o cinema em 1973 e é ainda hoje reconhecido como o filme de terror mais lucrativo de todos os tempos. E hoje o filme é um ícone do cinema de horror sendo a menina possuída uma das personagens mais facilmente reconhecidas. Mesmo que você nunca tenha assistido o filme - como é o meu caso - quando você vê o rosto de "Regan" você sabe automaticamente que a personagem é do filme o Exorcista. Para os corajosos fica a dica do filme.

sábado, 25 de outubro de 2014

Desafio do Halloween Literário: update 3

LINDQVIST, John Ajvide. Deixa ela entrar. São Paulo: Globo, 2012.



Deixa ela entrar é um livro de vampiros. Vampiros de "verdade", daqueles que bebem sangue humano, queimam ao sol, morrem com estacas no coração etc.

A história começa com a chegada de duas figuras estranhas a cidade de Blackeberg, um suburbio de Estocolmo. Aparentemente um pai e sua filha. E a partir da chegada dessas figuras começam a acontecer alguns assassinatos bizarros na cidade onde as vítimas são encontradas com o sangue drenado. Simultâneo a isso, temos Oskar um menino solitário de 12 anos que sofre bullying no colégio. Ele é perseguido pelos colegas de escola que o submetem a humilhações cruéis e diárias. Com isso Oskar começa a alimentar pensamentos de matar esses meninos em "brincadeiras" solitárias no parquinho de seu prédio. É assim que ele conhece Eli, a estranha menina que mudou recentemente para o prédio ao lado do dele e os dois desenvolvem uma amizade.

Conforme a leitura avança vamos descobrindo que o homem que cuida de Eli é na verdade um pedófilo e que eles tem uma relação bem bizarra. Porque este homem mata pessoas para conseguir sangue para Eli em troca de favores sexuais. As cenas do livro que envolvem esse personagem são desagradáveis porque temos uma repulsa natural a maneira como ele age. Imagine o grotesco da situação: uma criança que para conseguir alimento se assujeita a um pedófilo que por sua vez para ter garantido seus prazeres sexuais distorcidos mata outros seres humanos. O leitor não consegue ficar indiferente.

Ao mesmo tempo que criamos empatia pela personagem do vampiro porque o autor consegue apresentar para o leitor o complexo que é ser uma criatura que precisa de sangue humano para sobreviver e que para sobreviver precisa ser um assassino. Além do fato de que o vampiro, no caso, é uma criança esse sentimento divido fica ainda mais evidente. Ao mesmo tempo não podemos deixar de notar que Eli garante sua sobrevivência se associando com figuras com algum "desvio". Primeiro, ao pedófilo e depois ao menino que sofre bullying porque através da "fraqueza" dessas pessoas ela consegue garantir sua sobrevivência. No caso de Oskar por ele ser um menino que se sente sem lugar ajudar Eli é, de certa forma, encontrar o seu lugar no mundo. Um lugar onde ele se sente valorizado e reconhecido. O que se pararmos para pensar é cruel. 

Não quero me estender muito nos comentários sobre os eventos do livro para não estragar a surpresa para aqueles que ainda vão ler, mas as cenas de Hakan (o ajudante de Eli) transformado em Vampiro são realmente bizarras. A cena do necrotério é assustadora.

Enfim, é um livro bom e que além de dar nova vida a figura mitológica do vampiro ainda trás outras reflexões importantes. Vale a pena ser lido.